sexta-feira, 28 de novembro de 2008

Sobre homens e beija-flores


 

por thiago freitas


 


 

O desenvolvimento sustentável pensado através de Augusto Ruschi


 

Era o ano de 1975. O cientista, agrônomo, advogado, naturalista e ecologista Augusto Ruschi apresentava a um casal de cientistas americanos - Warren Kings e Barbara Sleeder, do museu de Nova Iorque - as riquezas contidas na pequena floresta de Santa Lúcia, no Museu Nacional, no Rio de Janeiro. Durante a rápida expedição, Barbara deseja saber quais as espécies de beija-flor habitam o local. Ruschi senta-se confortavelmente em cima de um tronco de árvore tombado no chão, tira seu chapeuzinho preto, descansa seu binóculo e começa a contagem com a ajuda dos dedos das mãos:

    - Você quer saber a família Trochilidae? - indaga.

    A resposta não vem. A americana apenas balança a cabeça favoravelmente. Ruschi toma fôlego e, parecendo uma espécie de Google humano, revela a cientista de uma só vez dezenas de nomes. Começa pelo científico e logo em seguida passa ao vulgar:

    - Balança-rabo-rajado, balança-rabo-do-bico-curvo, balança-rabo-da-mata, rabo-branco-do-bico-preto, rabo-branco-canel, rabo-branco-das-casas, beija-flor-tesoura, beija-flor-preto-de-rabo-branco, beija-flor-orelhudo, beija-flor-de-frente-preta, beija-flor-vermelho, topetinho-vermelho... – foram aproximadamente trinta.

    - O senhor tem tudo isso na cabeça?

    - Tenho. Só vivo disso, desde os 14 anos de idade. Meus filhos, ando nessa floresta melhor do que vocês na rua. Acreditem que eu sou um habitante dela.

    Esse episódio, assim como muitos outros, está registrado, em outras palavras, no livro "Ruschi - O agitador ecológico", do jornalista Rogério Medeiros. De história em história que se lê desse capixaba de Santa Teresa, cidade do Espírito Santo, é possível ver construída sua forte e importante personalidade. E principalmente sua ligação com a natureza. Especialmente com os beija-flores. Havia algo mais que especial entre eles. Algo que os tornavam amigos. Mais. Os tornavam únicos.

    À frente de seu tempo, Ruschi foi o primeiro, no Brasil, a chamar a atenção para algo que hoje conhecemos como desenvolvimento sustentável. Um desafio que a humanidade vem tentando enfrentar para continuar a existir neste planeta chamado Terra. Sua importância fica clara, feito água cristalina, uma vez que foi responsável por construir uma nova corrente de pensamento, em meados do século XX, sobre a relação homem e natureza. Lição que, hoje, mais de meio século depois, ainda apanhamos para aprender.

Antes de entrar nas necessidades essenciais para a sobrevivência da raça humana dentro dos contextos que bem conhecemos, faz-se necessário lembrar que o pensamento ruschiano não beirava, nem de longe, os discursos radicais utópicos de preservação do meio ambiente, estes muitas vezes levantados por motivos infundados ou pelo simples pretexto de que "os animais são bonitinhos, por isso é preciso protegê-los". Não. Ele conhecia como ninguém o perfeito e complexo equilíbrio de todo o ecossistema. Ruschi representou uma linha de raciocínio técnico, lógico, crítico e acima de tudo justo que tentou, e tenta até hoje, alertar os homens para a necessidade real e urgente de se reaprender a viver neste planeta, da necessidade latente de preservar recursos naturais, de evitar a emissão descontrolada de gases poluentes na atmosfera, de lutar incansavelmente contra o desmatamento das áreas florestais, de se proteger as espécies (vegetais e animais) em extinção... Enfim, são muitas as tarefas para nós habitantes.

Em primeiro lugar, a sociedade precisa entender que não há mais tempo para que o mundo continue girando em volta do eixo do capital econômico. É equivocado considerar desenvolvimento sustentável como sinônimo de crescimento econômico. Este não leva em consideração os recursos naturais que deles vão precisar as gerações futuras. As grandes organizações que ainda agem sem essa consciência estão, a sangue frio, assassinando o presente e o futuro de milhões de pessoas.

Se entendemos por desenvolvimento sustentável a utilização dos recursos naturais conscientes de que é preciso poupá-los para as gerações futuras, estamos, portanto, falando em respeito. Respeito não apenas referente ao meio ambiente, diariamente agredido em todos os cantos do planeta, mas respeito também aos demais seres humanos que moram (ou que virão a morar) nesta mesma "casa".

Assim, o que mais se faz pertinente para essa discussão são as possibilidades de reciclagem, que não se limitam ao reaproveitamento de matérias primas, materiais descartáveis, do lixo, ou de substâncias poluidoras que costumam ser despejadas diretamente em águas limpas ou no solo. Aqui falamos em reciclagem em sentido mais amplo. Ou melhor, mais profundo. Afinal, o mundo precisa ser reciclado. As relações humanas precisam ser recicladas. A política, o sistema (capitalista, comunista, socialista, tanto faz), a economia, a sociedade precisa ser reciclada. Recicladas também devem ser as idéias, os hábitos, a cultura de consumo. O ensino precisa de reciclagem. A forma de ser cidadão, de ser empregado, de ser empresa ou organização não-governamental. Os órgãos responsáveis pela preservação e fiscalização do meio ambiente, também, precisam de seriíssimo processo de reciclagem. E, principalmente, a natureza humana precisa, a partir de agora, ser reflorestada de sentimentos nobres como os que moviam Augusto Ruschi.

Defender uma nova política de utilização dos recursos naturais para a manutenção da economia mundial não pode ser tratada apenas como um caso de ideologia, dever ou obrigação. Isso precisa ser, no sentido literal do termo, plantado e cultivado nos seres humanos como amor. O mesmo amor que se dedica a um filho, como demonstra o mesmo Ruschi ao declarar, já adoecido pelo veneno dos dendrobatas, seu sentimento pelo filho Piero, o caçula, que em 1985 tinha apenas um ano e meio: "Ele agora é minha floresta".

O fato é que o homem precisa reencontrar o seu elo com o seu habitat natural. Precisa reaprender a ser homem, e menos civilizado. Precisa reaprender a viver com as outras espécies, inclusive com a sua própria. Só assim a humanidade poderá enfim encontrar a harmonia necessária para viver em estado de paz. Não muito diferente da que vive hoje o senhor Augusto Ruschi. Para lá, certamente foi levado como queria, carregado por um exército de beija-flores, aos quais, em vida, amou e protegeu, como um guardião da natureza, por ela mesma designado.

*Jornalista


 

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