segunda-feira, 21 de janeiro de 2008

Conversos

Eraldo Mai

Bailado

A dança cósmica
É dançada entre Deus e mim
Entre a minha alma e Deus

A alma pisa nos pés de Deus
Ele nem se incomoda
E me convida a bailar de novo






Ecumenismo

Os meus irmãos católicos rezam
Já meus irmãos evangélicos oram
E meus irmãos kardecistas fazem preces
Os meus irmãos hinduístas entoam mantras
E meus irmãos umbandistas cantam pontos
Os meus irmãos ateus torcem e têm pensamentos positivos

Enquanto isso
Os meus irmãos que não amam
E que também (sem fingimento!)
Não rezam
Não oram
Não fazem preces
Não entoam mantras
Não torcem nem têm pensamentos positivos
Por que não amam sofrem
São tão infelizinhos

Rezemos
Oremos
Façamos preces
Entoamos mantras
Cantemos pontos
Torçamos e tenhamos pensamentos positivos

Pra que os irmãos que não amam
Passem a amar
E conheçam conseqüentemente
A alegria

Suposições, meras suposições

Ora, sim, pois, pois

Eraldo Mai



Desde pequeninos, nos primeiros anos do segundo segmento do Ensino Fundamental, aprendemos, em aulas de Língua Portuguesa, que pronomes oblíquos átonos não devem iniciar sentenças. Os professores ensinam o que os livros ensinam, repetindo-se a prescrição sem que haja um motivo lógico para que ela exista. Afinal, o que mais fazem os usuários da nossa língua é começar frases com pronomes oblíquos átonos, especialmente com os de primeira pessoa, “me”. Que usuário do português, por mais escolarizado e atento ao emprego da língua, não formula sentenças como “Me contaram que o jogo foi emocionante”?

Oswald de Andrade (leia-se o prenome com acentuação prosódica na sílaba “wald”, porque assim o desejava o dito cujo), o genial poeta de nossa geração modernista de 22, em seu conhecidíssimo poema “Pronominais”, brinca irreverentemente: “Dê-me um cigarro/ Diz a Gramática/ Do professor e do aluno/ E do mulato sabido/ Mas o bom negro e o bom branco/ Da nação brasileira/ Dizem todos os dias: - Deixa disso, camarada/ Me dá um cigarro”. Pois é assim que dizemos, “Me dá”. Atualmente, o enfoque um tanto ou quanto lingüístico dos professores e dos livros os leva a aceitar que a anteposição do pronome ao verbo, iniciando-se a frase com o pronome, é um traço característico do registro coloquial da linguagem. Tal colocação, porém, no nível de um registro culto permanece absolutamente vedada. Por que, Deus meu, por quê? Se todo falante brasileiro, escolarizado ou não, doutor ou analfabeto inicia frases com o pronome “me”, por que tal procedimento é proibido num texto escrito formal? Quem determina que assim seja? Quem legisla sobre a “correção” da linguagem?

Há muitos e muitos anos, indagado sobre as regras de colocação dos pronomes oblíquos átonos, o filólogo João Ribeiro, respeitadíssimo estudioso do português, se saiu com esta: “Eu nos os coloco, eles é que se colocam”. Sábias palavras as do mestre. De fato, a colocação dos pronomes atende a uma questão de eufonia, isto é, àquilo que soa bem aos nossos ouvidos. Ora, por acaso soa mal aos ouvidos de alguém uma frase iniciada pelo pronome “me”? A que ouvidos soaria mal uma frase assim, se todos nós dizemos “Me conta”, “Me escuta”, “Me mostra”, “Me beija”?

Matutei sobre a questão por muito tempo. Todos os gramáticos renomados, entre os quais incluo Evanildo Bechara, Celso Cunha, Domingos Paschoal Cegalla, todos eles consideram um solecismo (lembram-se?) de colocação a próclise do pronome oblíquo átono no começo de frase. Em registro formal, modalidade escrita, jamais se deve começar uma sentença com “me”.

Então comecei a perceber que as regras de colocação desses pronomes, regras apresentadas em nossos livros de Gramática e, conseqüentemente, nos livros didáticos de Português, parece atenderem a uma prosódia (é o mesmo que pronúncia) tipicamente lusitana. Por isso, por exemplo, aprendi que não se deve escrever “Estou te pedindo”, com o pronome solto entre os dois verbos, o auxiliar e o principal. Devo escrever “Estou-te pedindo” ou “Estou pedindo-te”. A segunda versão é profundamente artificial em nossa fala. E a primeira? Leiam “Estou-te pedindo” ligando o pronome ao verbo “estou”. Não soa de modo muito estranho aos nossos ouvidos brasileiros? Parece-me estar aí o xis da questão. Nossa prosódia difere da prosódia lusitana, em que os pronomes como “me” e “te” são absolutamente átonos, ou seja, sem força em sua emissão, além de sofrerem uma redução fonética da vogal, que quase não se pronuncia. Já no português do Brasil, tais pronomes ganharam alguma tonicidade, e os dizemos como /mi/ e /ti/.

É claro que, na fala lusitana, não se poderia iniciar uma frase com o pronome “me”, que soa quase como um só fonema, a consoante nasal bilabial /m/. Nossos irmãos portugueses dizem “Dá-m’ o livro”, ficando praticamente imperceptível ao ouvido o som da vogal átona do pronome. Como dizemos /mi/ e não /m’/, colocamos o pronome no início da frase, antes do verbo, em próclise, até porque a próclise é a colocação mais natural do pronome oblíquo átono na fala brasileira. E como dizemos “Estou /ti/ pedindo” e não, como os usuários de Portugal, “Estou-/t’/ pedindo”, ao escrevermos não sentimos que o pronome esteja ligado ao verbo “estou”, pois, de fato, de acordo com nossa realidade de pronúncia, o pronome não está ligado a esse verbo.

Lembro meu professor de Língua Portuguesa na faculdade, Sérgio Waldeck, que, de maneira muito bem-humorada, criticava a prescrição dos gramáticos recomendando não colocar-se o pronome solto entre os dois verbos de uma locução. “Por que não pode estar solto, por acaso cai?”, perguntava meu mestre. Os livros têm repetido, há muito tempo, a lição relacionada a uma realidade lingüística que não é a nossa, mas é a realidade da fala de nossos colonizadores. É preciso ousar. Recomendo que se introduza, também no texto escrito em linguagem forma, a frase iniciada pelo pronome pessoal oblíquo átono, até que tal desempenho do usuário se torne a norma abonada pelos gramáticos. Afinal, eles não são os donos da língua, nem a inventaram. Quando nós assumirmos a nossa realidade lingüística, que fez de um vocábulo átono um vocábulo quase tônico, não haverá razão plausível para que se mantenham, nos livros, determinadas regras referentes à colocação pronominal, mesmo num texto solene.

Me causa espécie (notaram a sutileza da colocação?) que ninguém tenha percebido aquilo que me parece tão óbvio. Ainda agora, quando organizei a primeira sentença deste parágrafo, o meu computador, subserviente às regrinhas fundamentadas na pronúncia lusitana, me fez um risquinho verde sob “Me causa”, numa demonstração cabal de que a máquina não pensa, não faz suposições, não ousa.


*Poeta e professor de Língua Portuguesa da Ferlagos