quarta-feira, 5 de março de 2008

Macérrimo: o que é isso, companheiro?

Ora, sim, pois, pois...

Eraldo Mai


Todos nós que cursamos as séries do Ensino Fundamental, também quando ele era conhecido por outros nomes (na minha época havia o curso primário e o ginasial), decoramos listas enfadonhas de formas superlativas referentes a diversos adjetivos da nossa língua. O superlativo, para quem não se lembra do que seja isso, é a forma que exprime a qualidade acrescida de uma idéia de intensificação. Assim, se digo que uma pessoa é bela, digo menos do que quando digo que ela é belíssima. A forma “belíssima” é, pois, uma forma superlativa, e equivale a “muito bela”, ou “bela paca”, de acordo com determinada variedade lingüística. Aliás, a expressão “bela paca”, descontextualizada, é ambígua: pode tratar-se de uma paca bonita ou do adjetivo “bela” superlativizado por meio de “paca”, resultado a aglutinação de “pra” com um substantivo de valor aumentativo terminado em “alho” (sutil, não?).

Pois bem, aprendemos que a maior parte das formas superlativas termina com o sufixo “íssimo”, e algumas em “rimo”, que, equivocadamente, muitos supõem ser “érrimo”. Essas formas superlativas em “rimo” resultam do acréscimo do sufixo a uma forma erudita latina terminada em “er”: “muito negro”, por exemplo, além de ser “negríssimo”, é também “nigérrimo” (forma superlativa erudita), uma vez que “negro”, em latim, é “niger”. No registro coloquial da língua, amiúde encontramos formas como “chiquérrimo”, “baratérrimo”, “fresquérrimo”, como se “érrimo” fosse um sufixo intensificador. Aliás, como se fosse não; ficou sendo. Parece que a força expressiva de tais formas suplanta a de “chiquíssimo”, “baratíssimo”, “fresquíssimo”, certamente pela sonoridade dos [rr] correspondentes a um fonema velar que rasga a garganta do falante, se levamos em conta a prosódia do falar carioca, não limitado ao perímetro da Cidade Maravilhosa.

Feitas essas considerações, pergunto ao leitor qual seria a forma superlativa do adjetivo “magro”. Tenho a mais absoluta certeza de que ele me dirá “magríssimo” ou “magérrimo”. Surpreenda-se, leitor, com a informação de que está tudo bem com a primeira forma superlativa (“magríssimo”), mas a segunda, talvez mais utilizada do que a primeira, considera-se um erro. Como? Sim, um erro. De acordo com os doutos, com os versados no vernáculo, “magérrimo” é uma corruptela de “macérrimo”, esta sim a forma superlativa legítima (erudita, certamente) de “magro”. A explicação é simples: “magro”, em latim, é “macer”, donde “macérrimo”. Quantas vezes em sua vida, caro leitor, você ouviu alguém referir-se a uma pessoa muito magra chamando-a de macérrima. Poucas, ou nenhuma, certamente. E qual seria a razão de o falante, que é você, esse competente utilizador do sistema da língua, ter substituído “macérrimo” por “magérrimo”? Por que as pessoas, inclusive as bem escolarizadas, as letradas, por que todas as pessoas normais dizem “magérrimo” e não “macérrimo”? Somos todos um bando de ignorantes da língua, nós que a usamos como instrumento vivo de nossa comunicação? Como entender o que houve e continua havendo?

Entro, então, eu com a minha tese. Já encontrei outras explicações. Numa delas, um professor da UFRGS, Cláudio Moreno, discípulo do grande Celso Pedro Luft, explica a forma superlativa “magérrimo” como o resultado de um processo analógico. A analogia teria ocorrido com a forma “nigérrimo”, que, nesta matéria, mencionei. Com a devida vênia, discordo do eminente professor, até porque o usuário comum da língua não emprega a forma superlativa erudita do adjetivo “negro”. Nunca ouvi ninguém dizer que a pele de alguém é nigérrima. Como supor que “magérrimo” resulte de uma analogia com uma forma que o falante não utiliza?

A explicação, segundo o que intuo, é de outro jaez. Quero crer que a coisa passe pela questão estilística. As palavras são conjuntos de sons que veiculam um significado. Ora, há palavras cujo significado parece anunciar-se em sua massa sonora. Se digo, por exemplo, “O rapaz escapou por um tris do atropelamento”, uso uma palavra de expressivíssima sonoridade, a palavra “tris”. É como se meu interlocutor pudesse ver o rapaz quase sendo atropelado. Aquele fonema /i/ posposto ao grupo consonantal /tr/ do monossílabo nos dá nitidamente a idéia de um átimo de tempo.

Seguindo essa linha de raciocínio, observe-se a palavra “macérrimo”. A letra [c], em tal vocábulo, corresponde à fricativa /s/, sibilante. Tem o mesmo valor fonético dos [ss] da palavra “massa”. Assim, como não associar, quando escutamos “macérrimo”, o significado dessa palavra ao de “massa”? Fica a impressão de que uma pessoa macérrima é uma pessoa com muita massa, marombada, como se diria numa variedade saborosíssima da língua portuguesa. É como se o significante (a estrutura sonora da palavra) contradissesse o seu significado, porque uma pessoa macérrima tem pouca massa, já que é muito magra.

O falante, com sua sabedoria inata, substituiu o fonema /s/ de “macérrimo” pelo som correspondente ao da letra [j], mesmo som correspondente ao da letra [g] em “magérrimo”. Ao ouvir que alguém está magérrimo, o som do [g] sugere um desmilingüir-se, vocábulo também de massa sonora bem expressiva. “Magérrimo”, pelo caráter fricativo do fonema correspondente à letra [g], lembra a massa corpórea que se esvai, tornando esquálido o corpo, muito magro, portanto.

Se minha análise terá algum fundamento científico não sei. Sei que curti muito fazê-la. Espero que o leitor tenha embarcado comigo nessa viagem.



*Poeta e professor de Língua Portuguesa da Ferlagos

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