sexta-feira, 28 de dezembro de 2007

Solecismos e francesismos


Ora, sim, pois, pois

Eraldo Mai


Solecismo, para quem não sabe o que isso seja, é qualquer desvio da norma gramatical referente à concordância, regência ou colocação, isto é, uma transgressão relacionada à organização sintática de uma sentença. Assim, por exemplo, a posposição de um pronome átono ao verbo, caso haja, antes dele, uma palavra negativa, corresponde a um solecismo de colocação. Coisas como “Não deram-me a menor importância” correspondem a esse “vício” de linguagem. O certo, diria a veneranda Gramática de nossa língua, é “Não me deram a menor importância”, uma vez que, com a tal palavra negativa anteposta ao verbo, a próclise se faz obrigatória. Próclise é exatamente a anteposição do pronome oblíquo átono ao verbo. Também teríamos um caso de solecismo em frases como “Assistimos o jogo pela televisão”, porque, de acordo com a lição dos livros dos gramáticos, o verbo “assistir” é, quanto à sua regência, um verbo transitivo indireto, exigindo um complemento preposicionado. É claro que, no registro coloquial distenso, tal verbo é tratado mesmo como transitivo direto, e seu complemento não se preposiciona. Os livros didáticos, porém, e os censores da língua querem porque querem que o verbo seja transitivo indireto, e seu complemento seja antecedido de preposição. Não ocorrendo assim, houve um solecismo de regência.

Pois é exatamente em torno de um solecismo, de um bendito solecismo de regência, que escrevo a primeira parte desta matéria. A cena se passa há quase quarenta anos, mais precisamente em l968 (ano da Passeata dos Cem Mil), lá na Faculdade de Direito da UFRJ, quando eu cursava o terceiro ano do meu bacharelado. Havia uma prova de Direito Processual Penal. Naquele ano, já namorando aquela que se tornaria minha mulher por toda a vida, e a quem conheci na faculdade; dedicando-me à política universitária, aos atos de repúdio ao governo militar e ao imperialismo ianque, eu pouco freqüentei os bancos da escola. Ia mesmo só fazer as provas semestrais, mas, nas aulas, pouco dava o ar de minha graça. Foi justamente numa das provas, aquela referida acima, que a coisa aconteceu.

Entra na sala o professor. Constata que, para fazer a prova, há muitas dezenas de alunos, embora fosse baixíssimo o comparecimento às aulas. Exterioriza, então, sua indignação, alegando que não conhecia grande parte dos alunos que, na sala, se encontravam. Começa a olhar para nós, e eu, envergonhado, procuro não me fazer notar, porém seus olhos batem em mim. Com rispidez, pergunta-me: “O senhor é aluno da faculdade”? Confesso que, na minha irreverência de 22 anos, tive ímpetos de responder que não, que estava ali só de sacanagem, mas é óbvio que não me atrevi a tanto. Disse-lhe que era aluno regularmente matriculado. O mestre, então, pergunta-me se eu podia provar minha condição de aluno, justificando-se: “Sim, por que eu não lhe conheço”.

Foi a minha salvação: o professor cometera um tremendo solecismo. O verbo “conhecer” pede complemento sem preposição, conseqüentemente o pronome “lhe” não deve ser usado como seu complemento, já que sua função, de acordo com o que preceitua a norma culta é de objeto indireto. Quem conhece não conhece a alguém, conhece alguém. Assim, diante do “Eu não lhe conheço” do meu professor de Direito Processual Penal, jurista conhecidíssimo e respeitado, levanto-me da cadeira, inclino um pouco o meu corpo pra frente e digo em voz bem alta: “Mas eu o conheço, eu o conheço muito bem, professor”! O mestre percebe a gafe, avermelha, olha na minha direção e diz-me: “Está bem, está bem, pode sentar-se e fazer sua prova”!

Ufa! Salvo por um solecismo de regência!

O outro “causo” que me lembra (eis uma regência que Machado de Assis adorava: em vez de alguém lembrar algo ou lembrar-se de algo, algo é que lembra à pessoa) envolve um purista e sua teatralidade. O ano era o de l972. Eu já lecionava em cursinhos pré-vestibulares. Estava na PUC do Rio de Janeiro, esperando alunos que sairiam das salas onde faziam a prova do seu vestibular.

Entre os meus pupilos, havia um, cujo nome não recordo, mas de quem jamais esquecerei, excelente aluno, que, saindo da sala onde fizera a prova, conversa comigo a respeito da redação. O tema girara em torno de um poema de Drummond sobre a bomba atômica, que eu já analisara com meus alunos numa das aulas do cursinho. Meu pupilo dizia-me que tentara lembrar-se de tudo o que eu dissera sobre o poema, mas que não conseguira. Para consolá-lo, disse-lhe que, certamente, ele se esquecera de algum detalhe.
Pra que fui dizer detalhe? Perto de mim, estava um professor de um cursinho rival daquele em que eu trabalhava. Eu era um garoto de 26 anos; ele, um homem já maduro, de mais de 40 anos. Tido como um purista do vernáculo, ou seja, daqueles que odeiam palavras estrangeiras, os chamados barbarismos, horroriza-se com a palavra que eu dissera. Já houve tempo ( e a década de 70 já não era esse tempo), em que os tais puristas repudiavam palavras de origem estrangeira e, ridiculamente, criavam, com radicais gregos e latinos, outras que a elas sucederiam. Assim, por exemplo, em lugar de futebol, criaram ludopédio e balípode; em lugar de “soutien” (pasmem!), porta-seios; e anidropodoteca para substituir galocha. Pois o professor purista não tolerara o emprego da palavra “detalhe”.

“Mestre”, ele grita, abrindo os braços dramaticamente pra mim,”não diga detalhe, diga pormenor, porque detalhe é um galicismo”! Pode uma coisa dessas? Não dizer detalhe, dizer pormenor? Mas espera aí: que foi que ele disse mesmo? Detalhe é galicismo?

Então, do alto da minha juventude e dos meus cabelos longos, sorrindo pro meu acusador, revidei educadamente: “Mestre, não diga galicismo, porque galicismo já é um francesismo, não é”? O meu rival amarelou, engoliu em seco, tentou brincar, dirigindo-se ao diretor do meu cursinho: “O passe do Eraldo está à venda”? O discurso, agora, era outro.

Eis como conhecer certos pormenores (detalhes não, porque detalhe é francesismo) da língua pode nos socorrer em certas situações embaraçosas.



*Poeta e professor de Língua Portuguesa da Ferlagos

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