Eraldo Mai
Estava eu recém-chegado ao Arraial (ou a Arraial?) do Cabo, já faz quase trinta anos, quando, no dia seguinte a minha mudança, (eu vinha do Rio de Janeiro), fui à Praia Grande, bem perto da casa onde morava. Lá conheci um pescador, “seu” Cunha, grande e doce figura. Entre as tramas de uma enorme rede, ele consertava os estragos feitos pelas mantas dos peixes, nela, de quando em vez, aprisionados.
Pusemo-nos a conversar animados. Sempre fui considerado um bom interlocutor, porque me agrada escutar, falo mais do que ouço, e os muito falantes, como o amigo que eu acabara de conhecer, apreciam os que os ouvem atentos. Pois assim ficamos por largo tempo. A conversar. Eu ouvia com o júbilo natural dos que fazem novas descobertas, com o encanto dos que se inteiram de novas realidades. “Seu” Cunha era muito loquaz, sua prosa corria solta, deslanchava, escorregava entre risos espontâneos, e nós nos deixávamos ficar ali, iniciando aquela que seria uma sólida e definitiva amizade.
A horas tantas, o velho pescador, que teria, naquela ocasião, um pouco mais dos anos que tenho hoje, me diz para minha surpresa: “Professor, eu não sei falar”. Não entendi. Como não sabia falar, se falava comigo havia mais de uma hora? Externei, então, meu espanto, ao que ele me disse: “Não sei falar certo”.
Agora eu percebia a razão pela qual aquele homem tão educado, tão respeitoso, tão afável, tão receptivo a um “forasteiro” me dissera que não sabia falar, embora falasse, e muito. É que ele supunha que sua fala fosse de uma categoria inferior à minha, uma vez que eu me apresentara a ele como professor da nossa língua. Ele julgava que a sua fosse uma fala errada, em virtude de caracterizar-se por inúmeras peculiaridades que são próprias ao falar cabista. Ele introjetara a falsa noção de que algumas pessoas falam de um modo certo, e outras, de um modo errado. Mas não é assim. As pessoas falam de modos diferentes, e, se sua fala é o meio pelo qual elas se comunicam com os membros de sua comunidade, as diferenças não passam de diferenças.
É certo que há falas socialmente prestigiadas, enquanto outras se desqualificam. Os falantes dos grandes centros urbanos do Sudeste, por exemplo, supõem que a sua seja a fala correta, sendo incorreta a fala dos homens do interior ou das populações de pequenas cidades litorâneas, como Arraial do Cabo.
Nesta (escrevo de Arraial) outrora vila de pescadores, o falante nativo, ao pronunciar uma palavra como “manteiga”, realiza a consoante /t/, anteposta ao ditongo /ey/, de maneira chiante, além de tornar o ditongo uma só vogal: algo assim como “mantchega”. Os cariocas veranistas acham uma graça imensa nisso, ou mesmo fazem de tal prosódia alvo de sua zombaria. Esquecem-se de que realizam, na sua fala carioca, como “tchiatro” a palavra “teatro”, tornando a consoante /t/ idêntica à de “mantchega”. Não se dão conta de que se trata do mesmo fenômeno, chamado tecnicamente de alofonia (variante do fonema). Antes da vogal /i/, (e os cariocas realizam o “e” de teatro como /i/), sempre ocorre essa alofonia na fala dos falantes do Rio. Não é assim, como o sabemos, em todo o território brasileiro. Mas o Rio já foi a capital do país, é um grande centro cultural, uma cidade cosmopolita, e, forçosamente, todos os que falam a fala carioca julgam falar uma fala certa, ao passo que os pescadores mais antigos de Arraial do Cabo, uma cidadezinha cuja população não encheria o outrora maior estádio de futebol do mundo, o Maracanã, devam falar uma língua estropiada, rude, inculta, pobre, desprezível.
Trata-se de uma concepção elitista e autoritária, anticientífica e profundamente antipática, especialmente uma concepção que gera atitudes em que falta o amor ao próximo. A língua é um instrumento para a comunicação entre os seres humanos. Ora, independentemente de o discurso ter-se organizado de acordo com um padrão normativo ideal, desde que haja entendimento nessa comunicação, os usuários da língua estão certos.
Lembro-me de uma referência feita num livro de Magda Soares. O cenário é o de uma sala de aula de escola pública. Os alunos são, evidentemente, oriundos das classes populares da sociedade. A professora quis saber quem fizera o dever de casa. Um menino lhe diz: “Ninguém não fez o dever, tia”. Revolta-se a moça com a criança. Então é assim que se diz, “ninguém não fez”? E ensina o que é correto ao aluno: “ninguém fez”. Justifica sua correção alegando que “ninguém” e “não” são palavras de sentido negativo. Ora, duas negações se tornam uma afirmação. Dizer que ninguém não fez é dizer que alguém fez. Verificando que ninguém havia mesmo feito a tarefa que passara, a professora comenta em alta voz: “É, ninguém fez nada”. Como? “Ninguém fez nada?” Não há, por acaso, em tal sentença, duas negações? Segundo o raciocínio lógico da professora, se ninguém fez nada, alguém fez alguma coisa, já que “o nada” “o ninguém” fez.
Então começamos a perceber a riqueza da língua, suas nuances, suas particularidades, sua força expressiva. Pode ser que, de um ponto de vista lógico ou matemático, duas negações se anulem, passando a afirmar. O mesmo não ocorre em português, porque duas negações enfatizam a idéia negativa. Suponhamos que alguém me pergunte se fui à praia no último fim de semana e eu responda que não fui não. Teria eu, porventura, ido, já que neguei o não ter ido, repetindo a negação? Todos entendemos nitidamente que, repetindo a palavra “não”, estou intensificando a idéia negativa. Por isso, o poeta Fernando Pessoa escreve: “Não sou nada”. E Vinícius de Moraes, na letra de “Samba em Prelúdio”, afirma: “Sem você, meu amor, eu não sou ninguém”. A aceitarmos como plausível a idéia de que as negações se anulam, estaria o poeta dizendo que, sem a amada, ele era alguém, já que não era ninguém?
Por que motivo a professora reprova o procedimento lingüístico de seu aluno, que dissera “ninguém não fez”, e não percebe que o argumento desqualificador da fala da criança poderia ser utilizado para desqualificar a sua (dela) fala? Muito provavelmente porque pessoas da classe social da professora falam assim (“Ninguém fez nada”), mas não falam “Ninguém não fez”. Isso é tudo. Se pessoas do meu grupo social, da classe a que pertenço, pessoas do meu nível de escolaridade falam de determinada maneira, essa é a fala normal, a fala correta. Se pessoas de estratos sociais inferiores falam de maneira diferente da minha fala, estão falando errado.
Em verdade, em verdade lhes digo. Ninguém está falando errado. Ninguém não está falando errado. “Seu” Cunha sabia falar sim. E sua fala, de uma pessoa simples, afetuosa, era uma fala agradável, verdadeira, sem atitudes estudadas para agradar, mas que agradava naturalmente.
Dizer “nós vai” não está errado. É apenas diferente de dizer “nós vamos”. Afinal, as duas sentenças, distintas na forma, são idênticas em seu conteúdo semântico. A desinência (–mos) aponta para o agente do processo verbal (ir), repetindo aquilo que já o fizera o pronome “nós”. A informação é, por conseguinte, a mesma. Onde está o erro?
Quer dizer, então, que não existe uma fala incorreta? Até existe: é a fala mentirosa, a fala que tem por intuito iludir, enganar. A fala dos que usam as palavras não para a edificação de uma convivência fraterna entre os homens. A fala dos hipócritas, dos fariseus.
Não defendo, evidentemente, a idéia de que os falantes das classes populares não tenham acesso à variedade dita culta da língua. É um direito seu. Como também é um direito aquele que têm de ver sua variante lingüística respeitada pelos que falam de maneira diferente da sua. A beleza de uma língua, afinal, está nessa diversidade de usos, nessa manifestação plural, viva, levando-nos à compreensão e aceitação das diferenças.
Estava eu recém-chegado ao Arraial (ou a Arraial?) do Cabo, já faz quase trinta anos, quando, no dia seguinte a minha mudança, (eu vinha do Rio de Janeiro), fui à Praia Grande, bem perto da casa onde morava. Lá conheci um pescador, “seu” Cunha, grande e doce figura. Entre as tramas de uma enorme rede, ele consertava os estragos feitos pelas mantas dos peixes, nela, de quando em vez, aprisionados.
Pusemo-nos a conversar animados. Sempre fui considerado um bom interlocutor, porque me agrada escutar, falo mais do que ouço, e os muito falantes, como o amigo que eu acabara de conhecer, apreciam os que os ouvem atentos. Pois assim ficamos por largo tempo. A conversar. Eu ouvia com o júbilo natural dos que fazem novas descobertas, com o encanto dos que se inteiram de novas realidades. “Seu” Cunha era muito loquaz, sua prosa corria solta, deslanchava, escorregava entre risos espontâneos, e nós nos deixávamos ficar ali, iniciando aquela que seria uma sólida e definitiva amizade.
A horas tantas, o velho pescador, que teria, naquela ocasião, um pouco mais dos anos que tenho hoje, me diz para minha surpresa: “Professor, eu não sei falar”. Não entendi. Como não sabia falar, se falava comigo havia mais de uma hora? Externei, então, meu espanto, ao que ele me disse: “Não sei falar certo”.
Agora eu percebia a razão pela qual aquele homem tão educado, tão respeitoso, tão afável, tão receptivo a um “forasteiro” me dissera que não sabia falar, embora falasse, e muito. É que ele supunha que sua fala fosse de uma categoria inferior à minha, uma vez que eu me apresentara a ele como professor da nossa língua. Ele julgava que a sua fosse uma fala errada, em virtude de caracterizar-se por inúmeras peculiaridades que são próprias ao falar cabista. Ele introjetara a falsa noção de que algumas pessoas falam de um modo certo, e outras, de um modo errado. Mas não é assim. As pessoas falam de modos diferentes, e, se sua fala é o meio pelo qual elas se comunicam com os membros de sua comunidade, as diferenças não passam de diferenças.
É certo que há falas socialmente prestigiadas, enquanto outras se desqualificam. Os falantes dos grandes centros urbanos do Sudeste, por exemplo, supõem que a sua seja a fala correta, sendo incorreta a fala dos homens do interior ou das populações de pequenas cidades litorâneas, como Arraial do Cabo.
Nesta (escrevo de Arraial) outrora vila de pescadores, o falante nativo, ao pronunciar uma palavra como “manteiga”, realiza a consoante /t/, anteposta ao ditongo /ey/, de maneira chiante, além de tornar o ditongo uma só vogal: algo assim como “mantchega”. Os cariocas veranistas acham uma graça imensa nisso, ou mesmo fazem de tal prosódia alvo de sua zombaria. Esquecem-se de que realizam, na sua fala carioca, como “tchiatro” a palavra “teatro”, tornando a consoante /t/ idêntica à de “mantchega”. Não se dão conta de que se trata do mesmo fenômeno, chamado tecnicamente de alofonia (variante do fonema). Antes da vogal /i/, (e os cariocas realizam o “e” de teatro como /i/), sempre ocorre essa alofonia na fala dos falantes do Rio. Não é assim, como o sabemos, em todo o território brasileiro. Mas o Rio já foi a capital do país, é um grande centro cultural, uma cidade cosmopolita, e, forçosamente, todos os que falam a fala carioca julgam falar uma fala certa, ao passo que os pescadores mais antigos de Arraial do Cabo, uma cidadezinha cuja população não encheria o outrora maior estádio de futebol do mundo, o Maracanã, devam falar uma língua estropiada, rude, inculta, pobre, desprezível.
Trata-se de uma concepção elitista e autoritária, anticientífica e profundamente antipática, especialmente uma concepção que gera atitudes em que falta o amor ao próximo. A língua é um instrumento para a comunicação entre os seres humanos. Ora, independentemente de o discurso ter-se organizado de acordo com um padrão normativo ideal, desde que haja entendimento nessa comunicação, os usuários da língua estão certos.
Lembro-me de uma referência feita num livro de Magda Soares. O cenário é o de uma sala de aula de escola pública. Os alunos são, evidentemente, oriundos das classes populares da sociedade. A professora quis saber quem fizera o dever de casa. Um menino lhe diz: “Ninguém não fez o dever, tia”. Revolta-se a moça com a criança. Então é assim que se diz, “ninguém não fez”? E ensina o que é correto ao aluno: “ninguém fez”. Justifica sua correção alegando que “ninguém” e “não” são palavras de sentido negativo. Ora, duas negações se tornam uma afirmação. Dizer que ninguém não fez é dizer que alguém fez. Verificando que ninguém havia mesmo feito a tarefa que passara, a professora comenta em alta voz: “É, ninguém fez nada”. Como? “Ninguém fez nada?” Não há, por acaso, em tal sentença, duas negações? Segundo o raciocínio lógico da professora, se ninguém fez nada, alguém fez alguma coisa, já que “o nada” “o ninguém” fez.
Então começamos a perceber a riqueza da língua, suas nuances, suas particularidades, sua força expressiva. Pode ser que, de um ponto de vista lógico ou matemático, duas negações se anulem, passando a afirmar. O mesmo não ocorre em português, porque duas negações enfatizam a idéia negativa. Suponhamos que alguém me pergunte se fui à praia no último fim de semana e eu responda que não fui não. Teria eu, porventura, ido, já que neguei o não ter ido, repetindo a negação? Todos entendemos nitidamente que, repetindo a palavra “não”, estou intensificando a idéia negativa. Por isso, o poeta Fernando Pessoa escreve: “Não sou nada”. E Vinícius de Moraes, na letra de “Samba em Prelúdio”, afirma: “Sem você, meu amor, eu não sou ninguém”. A aceitarmos como plausível a idéia de que as negações se anulam, estaria o poeta dizendo que, sem a amada, ele era alguém, já que não era ninguém?
Por que motivo a professora reprova o procedimento lingüístico de seu aluno, que dissera “ninguém não fez”, e não percebe que o argumento desqualificador da fala da criança poderia ser utilizado para desqualificar a sua (dela) fala? Muito provavelmente porque pessoas da classe social da professora falam assim (“Ninguém fez nada”), mas não falam “Ninguém não fez”. Isso é tudo. Se pessoas do meu grupo social, da classe a que pertenço, pessoas do meu nível de escolaridade falam de determinada maneira, essa é a fala normal, a fala correta. Se pessoas de estratos sociais inferiores falam de maneira diferente da minha fala, estão falando errado.
Em verdade, em verdade lhes digo. Ninguém está falando errado. Ninguém não está falando errado. “Seu” Cunha sabia falar sim. E sua fala, de uma pessoa simples, afetuosa, era uma fala agradável, verdadeira, sem atitudes estudadas para agradar, mas que agradava naturalmente.
Dizer “nós vai” não está errado. É apenas diferente de dizer “nós vamos”. Afinal, as duas sentenças, distintas na forma, são idênticas em seu conteúdo semântico. A desinência (–mos) aponta para o agente do processo verbal (ir), repetindo aquilo que já o fizera o pronome “nós”. A informação é, por conseguinte, a mesma. Onde está o erro?
Quer dizer, então, que não existe uma fala incorreta? Até existe: é a fala mentirosa, a fala que tem por intuito iludir, enganar. A fala dos que usam as palavras não para a edificação de uma convivência fraterna entre os homens. A fala dos hipócritas, dos fariseus.
Não defendo, evidentemente, a idéia de que os falantes das classes populares não tenham acesso à variedade dita culta da língua. É um direito seu. Como também é um direito aquele que têm de ver sua variante lingüística respeitada pelos que falam de maneira diferente da sua. A beleza de uma língua, afinal, está nessa diversidade de usos, nessa manifestação plural, viva, levando-nos à compreensão e aceitação das diferenças.
*Poeta e professor de Língua Portuguesa da Ferlagos
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