sábado, 10 de novembro de 2007

Carta aberta a uma alfabetizadora

Guilherme Guaral

Querida Tia Lúcia,

Escrevo esta carta, pois estou com saudades. A última vez que te escrevi foi há quatro anos. Engraçado que mesmo depois desse tempo todo ainda continuo a te chamar de Tia. É, você foi para mim e tenho certeza para todos os seus alunos a TIA Maria Lúcia. Li numa Revista sobre Educação que alguns pedagogos criticam essa forma de tratamento com as professoras. Achei essa conversa uma grande bobagem! Chamar de Tia demonstra carinho, afeto, proximidade. Aliás, sem esses temperos não dá para se aprender nada!

Você sempre foi a TIA Maria Lúcia. TIA em maiúsculo! Tudo que você fazia era maiúsculo! As brincadeiras de roda, as músicas e as histórias que você nos contava não saem da minha memória. Algumas vezes você apagava as luzes, fechava as cortinas ou tapava as janelas com papel celofane, a sala ficava mágica, toda colorida. Pegava o disquinho e colocava na vitrola. Nossa, como o tempo passou!.. O disquinho na vitrola portátil vermelha! Me lembro como se fosse hoje... A turma de olhos arregalados ouvindo as histórias do Sítio do Pica-pau amarelo. E num dia, você se vestiu de Tia Nastácia e levou uma travessa cheia de cocadas, pé-de-moleque e broa de milho. E fomos nós que íamos lendo as histórias do Lobato. Cada página, um aluno. Cada página uma aventura. Cada página um sonho e um doce. É porque quem caprichava na leitura ganhava um doce inteiro. Se lesse com preguiça, de qualquer maneira, só ganhava metade ou um farelinho da guloseima.

Acho que nosso desejo de aprender ficou misturado com o cheiro e o gosto das cocadas, bolos de fubá e pão de queijo.

E você nos conduzia, literalmente, de mãos dadas para aprender de tudo. Passeávamos pela escola, pelo bairro, pelas praças, nos mercados, nos asilos, sempre com nosso caderno e o lápis para escrever o que a gente quisesse. Como você nos dizia: O que desse “na telha”! Engraçado, sabe que eu sempre fiquei imaginando que ao invés de cabelos nasceriam telas nas nossas cabeças! O que der “na telha”! E a gente anotava tudo, quase tudo. As vezes não anotava nada, mas você notava e sentava com cada um e procurava saber o porquê daquela folha em branco. Aí você abria o seu ouvido e nós abríamos nosso coração. Quantos segredos, tristezas, alegrias, raivas, ilusões!Quantas paixões você ouviu e dividiu conosco.

Na semana passada encontrei o Deco. Hoje ele é capitão do exército. Conversamos muito, demos muitas risadas. Ele me contou que você foi muito importante na vida dele. Talvez você nem se lembre, afinal, são tantos alunos, mas quando ele perdeu a mãe num acidente de carro foi você quem lhe deu força, carinho, atenção. Olha, ele ia falando de você e os olhos ficaram cheios d’água. Ele tentou segurar, disfarçou, mas não deu. O Deco chorou. Não de tristeza, mas de emoção, saudades e gratidão a você. Imagina, que o Deco me disse que guardou um monte de desenhos da nossa época. É por que se nós nção escrevêssemos nada tínhamos que fazer um desenho, colar uma gravura. A folha em branco é que não podia ficar. E não ficava mesmo!

Querida TIA Maria Lúcia, tenho que encerrar essa carta. Meu filho caçula está querendo fazer os deveres de casa. Ele está se alfabetizando. Hoje vamos pesquisar gravuras da família do M. Tenho ajudado o máximo possível porque sei que esse momento é fundamental para que a paixão pela leitura apareça. Para que o gosto de escrever seja constante e para que não se perca o encantamento do mundo, porque a escrita é a nossa marca nessa vida! Isso você me ensinou. A ser um apaixonado pelos livros, pelas histórias e saber que sou capaz de expressar tudo o que eu sinto através das palavras. Isso eu nunca vou me esquecer e queria aproveitar essas últimas linhas para te agradecer pela paciência, pelo carinho, pela alegria que sempre você demonstrou conosco. Quero te agradecer também pelas broncas que quando merecíamos você nos dava. Como aquela em que só de bagunça derrubamos uma caixa de giz colorido no chão e pisamos em cima, amassando tudo. Subiu uma poeirada colorida. Pois é, você nos fez varrer tudo e guardar o pó do giz num saquinho plástico. Depois pegou umas lixas e começamos a fazer denhos com cola e o pó de giz. Para você tudo se aproveitava. Tudo tinha um porquê. Tudo fazia sentido!

Se estivesse aí do seu lado eu te cantaria uma canção, que sempre que ouço tocar no rádio eu me lembro de você, da sua luta, do seu compromisso com os alunos, com a escola, com a vida. Você sempre foi uma guerreira, uma fada, as vezes feiticeira, mas, sempre, sempre, sempre foi e será a nossa TIA Maria Lúcia.

Beijos do seu eterno aluno

Guilherme Guaral

• OBS.: A música que eu mencionei acima é esta:


Maria, Maria (Milton Nascimento e Fernando Brant)

Maria, Maria, é um dom, uma certa magia
Uma força que nos alerta
Uma mulher que merece viver e amar
Como outra qualquer do planeta
Maria, maria, é o som, é a cor, é o suor
É a dose mais forte e lenta
De uma gente que ri quando deve chorar
E não vive, apenas aguenta

Mas é preciso ter força, é preciso ter raça
É preciso ter gana sempre
Quem traz no corpo a marca
Maria, Maria, mistura a dor e a alegria
Mas é preciso ter manha, é preciso ter graça
É preciso ter sonho sempre
Quem traz na pele essa marca
Possui a estranha mania de ter fé na vida


*Ator, professor e diretor do Teatro Municipal de Cabo Frio

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