por thiago freitas
Esperava-se de tudo. A Reforma Tributária, que não veio; a Reforma Agrária, que não veio; a Reforma Política, que também não veio, pelo menos não como era esperada... Mas veio a Reforma Ortográfica, sancionada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva em março deste ano. E neste mês, o Ministério da Educação (MEC) publicou, no dia 8, uma resolução no Diário Oficial exigindo que os livros didáticos que serão comprados para as escolas públicas a partir de 2010 estejam de acordo com as novas normas ortográficas da Língua Portuguesa. Além disso, o ministério já autorizou as editoras a fazerem essa adaptação a partir de 2009, apesar de ainda não ser obrigatória. Mas afinal, o que muda de agora em diante?
Se as mudanças são ou não necessária, só o tempo e o uso (ou não-uso) das novas regras por parte dos falantes da língua poderão dizer. A polêmica, contudo, já está instalada e divide opiniões entre os mestres da filologia, professores, escritores, jornalistas, estudantes, enfim, entre todos que falam e escrevem na língua de Luis de Camões.
Agora se escreve assim:
Caso um aluno do Ensino Fundamental ou Médio perguntar ao professor se, por exemplo, “lingüiça” se escreve com trema ou sem trema, ou ainda, se “herói” possui ou não acento agudo, não precisará se espantar se a resposta for: “linguiça”, sem trema, e “heroi”, sem acento. Essas são algumas das mudanças previstas pelo Acordo Ortográfico ora em debate. Parece esquisito, mas foi igualmente estranho em 1971, quando outra reforma na Língua Portuguesa deu cabo dos acentos circunflexos diferenciais de timbre, passando, portanto, a se escrever “ele”, “olho”, “gosto”, “este” em vez de “êle”, “ôlho”, “gôsto”, “êste”, como o era antes.
Nesta reforma atual, em que se pretende unificar a grafia dos vocábulos entre os países de Língua Portuguesa, estão previstas as seguintes modificações (ver grágico abaixo) para o português no Brasil, que deverão constar em todos os livros didáticos a partir de 2010, embora passem a vigorar já em janeiro do próximo ano:
Para Portugal, também haverá mudanças: desaparecerão o “c” e o “p” de palavras em que essas letras não são pronunciadas, como “acção”, “acto”, “adopção”, “óptimo” (se tornaram, portanto, “ação”, “ato”, “adoção”, “ótimo”); será eliminado o “h” de palavras como “herva” e “húmido”, que serão grafadas como no Brasil, “erva” e “úmido”.
Temos acordo (ou não?)O Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990 é um tratado internacional firmado entre os membros da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP) e que tem como objetivo criar uma ortografia unificada para o português, a ser usada por todos esses países, oito ao todo: Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, Portugal e São Tomé e Príncipe e Timor Leste - este último aderiu ao acordo em 2004.
A proposta visa a instituir uma ortografia única oficial da Língua Portuguesa e com isso aumentar o prestígio internacional, dando fim à existência de duas normas ortográficas oficiais divergentes: uma no Brasil e a outra nos demais países supracitados.
Atualmente, segundo estudos, o português é quinta língua mais falada no mundo, tendo cerca de 230 milhões de pessoas se comunicando através dela (190 milhões só no Brasil). Por causa de algumas diferenças ortográficas, existe uma dificuldade de estabelecer a língua como um dos idiomas oficiais da Organização das Nações Unidas (ONU), onde é necessária a tradução dos documentos para as suas duas variantes.
A adaptação proposta pelo Acordo Ortográfico acarretará alterações na grafia de cerca de 1,6% do total de palavras na norma européia e cerca de 0,5 a 2,0% na brasileira. Por essas e outras razões, ele é rejeitado por muitos lingüistas (olha o trema aí, gente!), escritores e outras personalidades que discordam da sua aplicação por motivos políticos, lingüísticos, econômicos ou jurídicos.
A razão da demora em se aprovar este acordo deve-se à relutância de alguns países, como Portugal, em ratificar o que foi acordado em 1990. Até julho de 2004, era preciso que todos os países membros da CPLP ratificassem as novas normas, mas um acordo feito nessa data estabeleceu que bastaria a ratificação por parte de três países. Em 1995, o Brasil efetivou sua ratificação, seguido de Cabo Verde, em fevereiro de 2006, e São Tomé e Príncipe, em dezembro. Faltava Portugal adaptar sua legislação às novas regras, o que foi feito hoje, em sessão planária do parlamento português.
Outras históriasAté o início do século XX, tanto em Portugal como no Brasil, seguia-se uma ortografia que, por regra, se baseava nos étimos latino ou grego para escrever cada palavra (ex.: pharmacia, lyrio, orthographia, diccionario etc.)
Em 1911, no seguimento da implantação da república em Portugal, foi levada a cabo uma profunda reforma ortográfica que modificou completamente o aspecto da língua escrita, aproximando-o muito da atual. No entanto, esta reforma foi feita sem qualquer acordo com o Brasil, ficando os dois países com duas ortografias completamente diferentes.
Ao longo dos anos a Academia das Ciências de Lisboa e a Academia Brasileira de Letras foram protagonizando sucessivas tentativas de estabelecimento de uma grafia comum a ambos os países. Em 1931 foi feito um primeiro acordo, no entanto, como os vocábulos que se publicaram, em 1940 (em Portugal) e 1943 (no Brasil), continuavam a conter algumas divergências, realizou-se um novo encontro que deu origem ao Acordo Ortográfico de 1945. Este se tronou lei em Portugal, mas no Brasil não foi ratificado pelo Congresso Nacional, continuando os brasileiros a regular-se pela ortografia do vocabulário de 1943.
Novo entendimento ente Brasil Portugal e Brasil – efetivo em 1971 no Brasil e em 1973 em Portugal – aproximou um pouco mais a ortografia dos dois países, suprimindo-se os acentos gráficos responsáveis por 70% das divergências entre as ortografias.
À época, resistências semelhantes às de agora foram manifestadas. Escreveu, por exemplo, o jornalista Lago Burnett: “Feita a toque de caixa, com base na Lei nº 5.756, de 18 de dezembro de 1971, a mais recente reforma ortográfica, mal entrou em execução, permitiu que se detectasse um sem-número de palavras que, além da exceção oficialmente consentida do ‘pôde’, não podem passar sem o [acento] diferencial. (...) Descobri, por acaso, que a simples eliminação do artigo ou outra partícula antes de certas palavras contribui para torná-la carentes de acentuação. Gôsto de barro na manhã molhada. Tirem o circunflexo diferencial da primeira palavra (um substantivo) e eis-me reduzido, pelo verbo, a uma vítima de verminose, ansioso por encher de terra o ventre inflamado”.
Ironias à parte, ainda assim as tentativas de acordo entre Brasil e Portugal não pararam por aí. Novas vieram em 1975 e 1986, mas não vingaram, a primeira devido ao período de convulsão política que se vivia em Portugal, o PREC; a segunda devido à reação que se levantou em ambos os países, principalmente a propósito da supressão da acentuação gráfica nas palavras esdrúxulas (ou proparoxítonas).
No entanto, como, segundo os proponentes da unificação, a persistência de duas ortografias da Língua Portuguesa impede a unidade intercontinental do português e diminui o seu prestigio no mundo, em 1990 foi feita a nova reunião e lavrado um novo acordo, menos ambicioso e atendendo às criticas feitas às propostas de 1986.
Novas pressõesA atual reforma também vem sendo questionada. Em Portugal, ela sofre fortes pressões para que não seja aprovada, como a do Manifesto Contra o Acordo Ortográfico, online desde 2 de maio, que já reúne 33 mil assinaturas e foi entregue ontem ao presidente da Assembléia da República do país, onde a proposta da reforma foi votada pelo parlamento de Portugal.
No Brasil, mesmo que já aprovada, fala-se mais em custos e prejuízos que o acordo provocará ao mercado editorial. O governo brasileiro é um dos maiores compradores de livros didáticos do mundo. Só no ano passado, foram mais de 120 milhões de exemplares. Contudo, só o trabalho de preparação e revisão de cada livro, para as editoras, pode custar em média cerca de R$ 5 mil. A reforma levaria à súbita obsolescência de dicionários, gramáticas e livros escolares. Mas há quem já esteja se adaptando no universo virtual, como o Priberam, dicionário online, cujas novas versões e ferramentas já estão sendo atualizadas de acordo com as novas normas ortográficas.
Entrevista / Eraldo Maia
Eraldo Maia, estudioso apaixonado pela Língua Portuguesa, é professor da Fundação Educacional da Região dos Lagos (Ferlagos) e leciona também nas séries do Ensino Médio em escolas de Arraial do Cabo. Em entrevista exclusiva ao Lagos Alternativa, ele fala da posição pessoal que tem a respeito da reforma, tendo ele próprio acompanhado como professor (leciona desde 1968) a reforma de 1971. A exemplo da última, acredita, “tudo será uma questão de tempos para que todos se habituem às novas regras”.
LA - Como professor e estudioso da Língua Portuguesa, qual é a sua posição a respeito desse Acordo Ortográfico?
Eraldo - Se o Acordo Ortográfico proposto realizar seu maior objetivo, o sonho do filólogo Antônio Houaiss, qual seja o de uniformizar a grafia das palavras de nossa língua nos oito países cujo idioma nacional é o português, terá sido, sem dúvida, conveniente sua implementação.
LA - O senhor acha realmente que este acordo vai simplificar a comunicação entre os países de Língua Portuguesa, ou ele não se faz necessário?
Eraldo - É claro que, sendo medida relacionada à modalidade escrita da língua, havendo uma grafia uniforme das palavras em todos os países que fazem parte da CPLP (Comunidade dos Países de Língua Portuguesa), a comunicação em registro escrito pode tornar-se mais ágil e mais precisa.
LA - Qual a maior dificuldade em se implementar mudanças desse tipo entre os usuários da língua?
Eraldo - Trata-se de uma questão de tempo. Aos poucos, os que se valem da modalidade escrita da língua vão familiarizando-se com as novas normas ortográficas. A princípio, parecerá estranho grafar "antirrábico" e não "anti-rábico". Parecerá estranho, porém, para os já alfabetizados, uma vez que os alfabetizandos não sentirão estranheza alguma. Com o passar do tempo, já não se estranhará a nova grafia.
LA - A partir de agora, nas salas de aula, que são os locais por onde as novas regras ortográficas vão realmente começar, como fica? Qual deve ser a postura dos professores de Língua Portuguesa?
Eraldo - Os professores devem começar a fornecer informações aos seus alunos sobre o conteúdo do Acordo Ortográfico, lembrando sempre que não é, exatamente, mudança na língua, mas tão-somente na transcrição gráfica de seus elementos lexicais, as palavras.
LA - Pelo que o senhor tem observado nas escolas, qual é a posição das pedagogas, diretoria, professores... As escolas já cogitam começar a se adaptar a isso? E nos concursos públicos, como ficam as questões de acentuação, colocação do hífen, o uso do trema (que já tentaram matar várias vezes, mas não morreu). O que passa a valer para as bancas?
Eraldo - Pelo que percebo na minha experiência de docência superior e no Ensino Médio, as escolas ainda não estão levando em considerando prioritária a questão do Acordo Ortográfico. Há uma completa desinformação a respeito do assunto. Quanto aos concursos públicos, deve prevalecer, por enquanto, o que está prescrito pelo Acordo Ortográfico de 1943, com as alterações da minirreforma de 1971, até 2010, prazo para que oa livros didáticos se tenham adaptado às inovações da nova convenção ortográfica.
LA - O senhor já era professor quando houve a reforma ortográfica de 1971. Pode contar um pouco sobre os processos de adaptação da época? Aquele acordo já era um princípio dessa iniciativa de tentar unificar a grafia dos vocábulos entre os países de Língua Portuguesa?
Eraldo - Não havia, na minirrforma de 1971, o propósito de unificação da grafia do português nos vários países lusófonos. Foi algo doméstico, que, diga-se de passagem, se houve muito bem ao abolir aquele acento circunflexo chamado de acento diferencial. De começo, lembro que era no mínimo esquisito escrever "ele", "olho", "este", "coco" e não "êle", "ôlho", êste", "côco". Foi só uma questão de tempo. Eu, por exemplo, alfabetizado em 1951, e leitor voraz, por vinte anos li e escrevi "aquêle", mas, com a abolição do circunflexo diferencial de timbre, em pouco tempo já me acostumara à nova grafia. Pena é que a minirreforma se tenha esquecido do diferncial de intensidade, mantendo os acentos em "pêra" e "pêlo", por exemplo. Com o novo Acordo Ortográfico, desaparecem esses diferenciais de intensidade: o substantivo "pera" e a preposição arcaica "pera", um dissílabo átono, passam a grafar-se igualmente. Aliás, sendo arcaica tal preposição, nem mais grafada ela é.
LA - O presidente da Academia Brasileira de Letras, Marcos Vilaça, disse que "a reforma é bem-vinda, pois quando você simplifica, coloca a língua mais próxima do povo", e diz ainda que "a língua é um ser vivo e tem que estar em dia com a vida, com acréscimos e reduções". Já o professor Pasquale Cipro Neto considera que "esta é uma reforma meia-sola, que não unifica a escrita de fato". O escritor João Ubaldo Ribeiro, por sua vez, também destaca que "é uma reforma muito tímida, que não faz grandes inovações". Com qual desses o senhor concorda, e de qual descorda?
Eraldo - Creio que, de certo modo, os três tenham alguma razão naquilo que dizem. Um projeto de unificação da grafia da língua é,sem dúvida, benéfico, mas talvez a reforma pudesse ser mais radical. Devemos ainda considerar a impossibilidade concreta de se efetivar uma uniformização total do português de todos os países que compõem a lusofonia. Afinal, se nossos irmãos lusitanos pronunciam "António", com uma vogal tônica de timbre aberto, e nós dizemos "Antônio", com o timbre fechado, como chegar a uma só grafia? Há que se considerar a especificidade de prosódia, que distingue (sem trema, antes e depois da reforma) a identidade da língua portuguesa nos diversos países em que ela é utilizada como meio de comunicação.
LA - Sobre a evolução da língua portuguesa falada no Brasil, o que podemos observar de mais interessante nesses mais de 500 anos de "falação"?
Eraldo - Com a presença africana em nosso país, desde o início do processo colonizatório, como bem observa Gilberto Freyre, a língua portuguesa falada pelos brasileiros adocicou-se, suavizou-se em sua pronúncia, ganhou certa manemolência (quase todos dizem "malemolência"), tropicalizou-se como expressão mais condizente com a alma brasileira. A prosódia lusitana é mais sincopada, a nossa se arrasta preguiçosamente (no bom sentido, é claro). Além de ter-se enriquecido o nosso léxico com cerca de dez mil palavras cuja origem se encontra na língua tupi, aquela que os portugueses chamaram de língua geral.
Publicada também na Folha dos Lagos, em 17 de maio de 2008